A Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) entregou à Justiça o inquérito que apurou as causas do rompimento da barragem B1 do Córrego do Feijão, em Brumadinho. O relatório final das investigações foi apresentado pelo Departamento Estadual de Investigação de Crimes Contra o Meio Ambiente (Dema) perante à 2ª Vara Criminal de Brumadinho, nessa terça-feira (21). Nele, 16 pessoas foram indiciadas por crimes de homicídios dolosos duplamente qualificados e por diversos crimes ambientais decorrentes do rompimento da barragem, no dia 25 de janeiro de 2019. As empresas Vale S.A. e Tüv Süd Bureau de Projetos e Consultoria Ltda. também foram indiciadas pelos mesmos crimes ambientais. O desastre causou a morte de 270 pessoas, entre funcionários da Vale e de empresas terceirizadas, moradores do município e visitantes; além de deixar um rastro de destruição.
Durante quase um ano de apurações, foram coletados e produzidos inúmeros documentos, que instruíram 85 volumes do Procedimento Investigatório Criminal e Inquérito Policial. 183 pessoas foram ouvidas, entre investigados, testemunhas e vítimas sobreviventes; 23 mandados de busca e apreensão foram cumpridos e 94 dispositivos eletrônicos analisados, com quase 6 milhões de arquivos digitais. Os órgãos técnico-científicos do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e da PCMG fizeram profundos estudos interdisciplinares de variados aspectos.
O chefe da PCMG, delegado-geral Wagner Pinto de Souza, destacou a importância do trabalho integrado e a complexidade das investigações. “Gostaria de ressaltar a importância desse trabalho desenvolvido em parceria com o MPMG. Preliminarmente, mediante a gravidade dos fatos, instituímos uma resolução conjunta para que convergíssemos todos os esforços necessários para fazermos um trabalho realmente integrado. Com isso, chegamos à conclusão da responsabilidade penal dessa tragédia”, explicou.
Segundo o relatório elaborado, a conclusão das investigações demonstra a existência de uma promíscua relação entre as duas empresas indiciadas. O objetivo era esconder do Poder Público, sociedade, acionistas e investidores a situação de insegurança de várias das barragens de mineração mantidas pela Vale. “Com o apoio da Tüv Süd, a Vale operava uma caixa-preta com objetivo de manter uma falsa imagem de segurança da empresa de mineração, que buscava, a qualquer custo, evitar impactos a sua reputação e, consequentemente, alcançar a liderança mundial em valor de mercado”, está no relatório.
O delegado Eduardo Vieira Figueiredo, do Departamento Estadual de Investigação de Crimes contra o Meio Ambiente (Dema), destacou que o trabalho investigativo conjunto foi fundamental para a coleta de provas que permitiram tanto aos delegados quanto aos promotores compreender os fatos para fazer as atribuições de responsabilidades penais com os respectivos indiciamentos e denúncias.
Vieira detalhou, ainda, os recursos empreendidos pela PCMG para a minuciosa investigação, como cumprimento de mandados de prisão temporária, análise de vínculos a partir do cumprimento de mandados de busca e apreensão, que resultaram na coleta de aparelhos eletrônicos dos investigados. “Isso foi de extrema importância, uma vez que revelou muitos elementos de prova que até então não tinham sido apresentados às autoridades”, explicou. O delegado chamou atenção também para a utilização de equipamentos tecnológicos, como os drones, para o auxílio da realização de perícias ambientais.
Por fim, Vieira destacou o trabalho desenvolvido pelos profissionais do Instituto Médico Legal André Roquette (IML), do Instituo de Identificação e da Perícia Criminal da Polícia Civil. “Os profissionais do IML e do Instituto de Identificação desempenharam um papel técnico de excelência e, acima de tudo, humano, respeitando a todo momento os familiares das vítimas. Além disso, foi fundamental o trabalho altamente qualificado dos nossos peritos criminais, que trouxeram fundamentos para que pudéssemos firmar as conclusões jurídicas a respeito das imputações criminais”, concluiu.
O delegado Luiz Otávio Braga Paulon, também do Dema, chamou a atenção para os danos ambientais irreparáveis na região. “Segundo os laudos, os danos provocados à flora e fauna local são de caráter irreversível. Jamais aquele local vai ser como era antes. As terras também atualmente são infrutíferas para a agricultura comercial”, pontuou.
Indiciados/Denunciados
Além das duas empresas, 11 indiciados e denunciados ocupavam, à época da tragédia, os seguintes cargos na Vale:
1. Fabio Schvartsman (diretor-presidente);
2. Silmar Magalhães Silva (diretor do Corredor Sudeste);
3. Lúcio Flávio Gallon Cavalli (diretor de Planejamento e Desenvolvimento de Ferrosos e Carvão);
4. Joaquim Pedro de Toledo (gerente-executivo de Planejamento, Programação e Gestão do Corredor Sudeste);
5. Alexandre de Paula Campanha (gerente-executivo de Governança em Geotecnia e Fechamento de Mina);
6. Renzo Albieri Guimarães de Carvalho (gerente operacional de Geotecnia do Corredor Sudeste);
7. Marilene Christina Oliveira Lopes de Assis Araújo (gerente de Gestão de Estruturas Geotécnicas);
8. César Augusto Paulino Grandchamp (especialista técnico em Geotecnia do Corredor Sudeste);
9. Cristina Heloíza da Silva Malheiros (engenheira sênior junto à Gerência de Geotecnia Operacional);
10. Washington Pirete da Silva (engenheiro especialista da Gerência Executiva de Governança em Geotecnia e Fechamento de Mina);
11. Felipe Figueiredo Rocha (engenheiro civil, atuava na Gerência de Gestão de Estruturas Geotécnicas).
Da Tüv Süd, empresa alemã responsável pelo laudo que atestou a segurança da barragem, cinco pessoas foram indiciadas e denunciadas:
1. Chris-Peter Meier (gerente-geral da empresa);
2. Arsênio Negro Júnior (consultor técnico);
3. André Jum Yassuda (consultor técnico);
4. Makoto Namba (coordenador);
5. Marlísio Oliveira Cecílio Júnior (especialista técnico).
Homicídio qualificado
As 16 pessoas são acusadas pelo crime de homicídio duplamente qualificado, por 270 vezes. Conforme a conclusão das investigações, os crimes foram praticados por meio que resultou perigo comum, já que um número indeterminado de pessoas foi exposto ao risco de ser atingido pelo violento fluxo de lama.
Além disso, concluiu-se que os crimes foram praticados mediante recurso que impossibilitou ou dificultou a defesa das vítimas – já que o rompimento da barragem ocorreu de forma abrupta e violenta, tornando impossível ou difícil a fuga de centenas de pessoas que foram surpreendidas em poucos segundos pelo impacto do fluxo da lama – e o salvamento de outras centenas de vítimas que estavam na trajetória da massa de rejeitos.
Crimes ambientais
Todos os acusados também responderão pela prática de crimes contra a fauna; crimes contra a flora e crime de poluição.
O rompimento da Barragem I ocasionou o vazamento de aproximadamente 9,7 milhões de m3 de rejeito de mineração em forma de lama, destruindo, durante seu fluxo, parcelas de comunidades, acessos, áreas de florestas e também áreas de cultivos, assolando tudo o que se encontrava em sua trajetória, até alcançar a confluência do Ribeirão Ferro-Carvão com o Rio Paraopeba, a cerca de 9 quilômetros da barragem.
Em razão do rompimento e da onda de rejeito que se seguiu, os indiciados causaram a morte de espécimes da fauna silvestre; destruição de ninhos, abrigos ou criadouros naturais; perecimento de espécimes da fauna aquática; destruição de florestas consideradas de preservação permanente e vegetação secundária do bioma Mata Atlântica; dano direto ou indireto às unidades de conservação e às áreas circundantes; poluição de diversas naturezas em níveis que resultaram em danos à saúde humana, destruição significativa da flora; poluição hídrica que tornou necessária a interrupção do abastecimento público de água de comunidades da região.
Conhecimento dos riscos
De acordo com as investigações, ao menos desde 2017, a Barragem I da Mina Córrego do Feijão já apresentava situação crítica para riscos geotécnicos. Em 2018, outras anomalias se seguiram, aprofundando a situação de emergência da barragem. Os principais modos de falha com análises de estabilidade em valores inaceitáveis de segurança eram erosão interna e liquefação, ambas relacionadas com problemas de drenagem interna da barragem.
As apurações demonstraram que a Vale detinha, internamente, diversos instrumentos que garantiam amplo conhecimento da situação de segurança de suas barragens. Entretanto, de forma sistemática, ocultava essas informações do Poder Público e da sociedade, incluindo investidores e acionistas da empresa.
No relatório final, os delegados citam, como exemplos, os sistemas computacionais Geotec (Sistema de Gerenciamento de Recursos Geotécnicos) e GRG (Gestão de Risco Geotécnico), que permitiam a produção de conhecimento (estatísticas e análises gráficas) sobre a situação global das barragens e o conhecimento profundo das peculiaridades do dia a dia de cada estrutura.
Outro exemplo de produção e compartilhamento de informações eram os Painéis Independentes de Especialistas para Segurança e Gestão de Riscos de Estruturas Geotécnicas (Piesem), que reuniam especialistas externos e as equipes técnicas da Vale e de consultores e auditores externos para debater temas críticos e definir parâmetros de análises técnicas e de tolerabilidade aos riscos. Ao final de cada Piesem, os especialistas consolidavam um relatório final, que circulava internamente, contendo todas as informações relevantes para tomada de decisão da alta cúpula.
No Piesem de junho de 2018, a Barragem I ocupava a oitava posição no “Ranking de Barragens em Situação Inaceitável”. As dez barragens listadas eram consideradas com probabilidade de falha acima do limite aceitável a partir de resultados de estudos da própria Vale. Contraditoriamente, no mesmo mês do evento, a equipe técnica da Tüv Süd emitiu Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) da Barragem I.
Responsabilidade
No relatório final que compõe o inquérito policial, os delegados argumentam que, tendo conhecimento do risco de um rompimento, os indiciados tinham dever de tomar as medidas de segurança necessárias, como o acionamento do Plano de Ações Emergenciais para Barragens de Mineração (PAEBM), mas preferiram arriscar para não gerar impactos na reputação da Vale e no valor de suas ações.
O relatório final é assinado pelos delegados da Polícia Civil de Minas Gerais, Bruno Tasca Cabral, Eduardo Vieira Figueiredo e Luiz Otávio Braga Paulon; e pelos promotores de Justiça, William Garcia Pinto Coelho, Ana Tereza Ribeiro Salles Giacomini,.Francisco Chaves Generoso, Paula Ayres Lima, Fabrício José Fonseca Pinto e Leandro Wili.
PCMG