Dona exclusiva da marca no Brasil desde 2019, a norte-americana CrossFit Inc tem travado –e vencido- disputas judiciais contra academias que usam o nome da prática sem autorização.
O programa de treino de força e condicionamento físico que costuma levar pessoas aos chamados “boxes” para praticar a modalidade funciona em um esquema de filiação. Só pode usar a marca e oferecer o treinamento quem for licenciado.
As academias e unidades que não pagam podem ser alvos na Justiça. Em caso de uso indevido do nome, há possibilidade de condenação ao pagamento de indenização por danos morais e patrimoniais, além de multa se ficar constatado descumprimento de decisão judicial.
A afiliação à CrossFit custa R$12.000 por ano e há a possibilidade de parcelar o valor em 12 vezes de R$ 1.000. Desde setembro de 2022, o pagamento pode ser feito em real. É preciso também que o proprietário ou representante conclua um curso de treinamento. Hoje são cerca de 600 academias afiliadas à CrossFit no Brasil.
O pedido de registro da marca no INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) foi feito em 2010. O órgão negou inicialmente a solicitação, por entender se tratar de “expressão de uso comum para o segmento”.
A decisão foi revertida em recurso e a concessão da marca pelo INPI saiu em janeiro de 2019. A partir daí, abriu-se o caminho para que a companhia acionasse academias pelo país requerendo a retirada de nomes de empresas e seu uso em fachadas, sites, redes sociais e uniformes.Há decisões convergentes nos tribunais brasileiros.
Justiça
Em dezembro de 2020, a 1ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decidiu rejeitar o recurso de uma academia e manter a decisão de primeira Instância, proibindo o uso do nome “CrossFit” em qualquer meio: nome, website, redes sociais, publicidade, fachada e roupas.
Segundo voto do desembargador Fortes Barbosa, relator do caso, a expressão “CrossFit” não pode ser “tida como de uso comum”.“A marca em questão possui proteção legal e, para seu uso legítimo, faz-se necessário licenciamento e pagamento de uma retribuição ajustada (“royalties”), não podendo ser acolhido o argumento da recorrente de vulgarização da expressão ‘Crossfit’”, afirmou o magistrado.
A academia argumentou no processo que, no Brasil, o nome CrossFit ficou conhecido como “designativo da atividade funcional de alto impacto” e que não se pode confundir a marca com a metodologia de treino, “pois seria como possibilitar o registro da marca ‘futebol’ e proibir seu uso”. Outro ponto levantado é que o nome teria caído no linguajar popular, citando inclusive termos derivados, como “crossfiteiro”.
Outra decisão, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), manteve uma condenação por danos morais de R$ 10 mil a uma academia que também usava o termo sem licença. A empresa condenada disse não haver evidências de que o uso do nome tenha causado danos à CrossFit.
Também afirmou que é uma “academia de bairro” sem filiais e que foi “veementemente afetada pelos atos governamentais originários da pandemia que teve em seu contexto a missão de manter o isolamento social, impondo o fechamento da academia por longo período”.
A argumentação não prosperou. Em decisão de outubro de 2021, a 10ª Câmara Cível entendeu que a expressão “CrossFit” não se refere ao nome do serviço prestado e nem ao gênero dele, mas a uma modalidade específica de treinamento físico.
Em seu voto, o desembargador Bernardo Moreira Garcez Neto disse que a academia “se limitou a alegar que a marca ‘CrossFit’ não teria mais o requisito da distintividade e, por isso, os efeitos da proteção do registro deveriam ser afastados”.“Se aplicarmos interpretação lógico-sistemática, veremos que o que a apelante pretende a invalidade do registro da marca no INPI”, declarou.
Proteção da marca
Para a professora Kone Prieto Furtunato Cesário, o tempo para o INPI aprovar o registro da marca no país, de nove anos, pode ter colaborado para a popularização do termo e a proliferação do uso por academias.
“Essa demora do INPI tinha levado todo mundo a sair usando, e achando que aquilo era o nome de uma prática esportiva, quando não era. Era uma marca criada por um sujeito com registros em outras partes do mundo”, disse à CNN.
Cesário é professora de Direito Comercial e Propriedade Intelectual na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e na Academia de Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento do INPI. Ela foi uma das responsáveis por elaborar um parecer encomendado pela CrossFit para fortalecer o recurso que tramitava no INPI, na disputa pelo registro da marca.
Para a especialista, por mais que pareça “comum e dicionarizado”, o termo CrossFit é inventado. “É uma palavra inventada, junção de outras, mas inventada”. Segundo Cesário, a investida judicial dos norte-americanos pelo uso do nome se justifica pela proteção da marca e manutenção de um padrão de qualidade na prestação do serviço.
Isso vale, segundo ela, mesmo para academias de pequeno porte. “Mesmo a empresa sendo pequena, a ação é importante para a proteção da marca”, afirmou. “Alguém está pagando para os americanos para licenciar. Se todo mundo usar, não vão querer pagar mais”.
Conforme a especialista, buscar resguardar o uso do nome também evitaria possíveis danos aos consumidores e atletas, que poderiam colocar a saúde em risco caso treinem com profissionais não habilitados para a prática.
A norma que regula os direitos e obrigações envolvendo marcas é a Lei de Propriedade Industrial, de 1996. A lei proíbe a reprodução de marcas registradas por quem não tenha direitos, seja de forma parcial ou com acréscimos, com intuito de evitar que o consumidor seja levado a erro.
A Justiça brasileira também tem decisões sobre termos aproximados com o original. Em setembro de 2022, o juiz Luiz Alberto Carvalho Alves, da 3ª Vara Empresarial do TJ-RJ, deu uma decisão liminar (provisória) proibindo academias a usar o nome CrossFit e “quaisquer variações, a exemplo de CROWN.FIT, CROSSFT, CFT, CF, CFIT”.
Se por um lado as empresas contam com a proteção legal, por outro, essa segurança não é ilimitada. Um risco que marcas populares correm é a chamada “degeneração”.O fenômeno é um processo que culmina com a marca passando a corresponder com o produto ou serviço que fornece. Quando isso ocorre, a marca vira sinônimo da coisa que representava, e passa a constar em dicionários, por exemplo.
“Há esse risco de degenerescência, de diluição, que é uma marca, uma expressão fantasiosa, que acaba se tornando sinônimo do produto”, afirmou Cesário. “Com o próprio uso que a sociedade vai dando, linguisticamente. Quando o dicionário incorpora, isso quer dizer que se tornou sinônimo. E aí tem um processo de perda de direitos sobre a marca, quando deixa de ser marca e passa a ser sinônimo do produto”.
Posicionamentos
A CNN procurou a ACAD (Associação Brasileira de Academias) mas a entidade disse que não iria se manifestar sobre o tema.
Em nota à CNN, a representação brasileira da CrossFit disse que não tem autorização para informar sobre processos judiciais em andamento, mas que obteve “100% de êxito” nas ações sobre uso da marca já ajuizadas.
A empresa também disse que o registro no INPI garante a exclusividade do uso da marca e de suas abreviações no Brasil.“Isso significa que outras empresas ou indivíduos não podem usar a marca CrossFit ® ou sinais semelhantes, para identificar produtos ou serviços idênticos ou afins sob o risco de gerar confusão ou associação indevida com a empresa CrossFit, LLC e seus consumidores no mercado”.
“Caso um estabelecimento não afiliado utilize o nome CrossFit® sem a devida autorização e de forma inadequada, bem como anunciando aulas de CrossFit®, expondo o nome em fachadas, uniformes, vestuários ou sinalizações internas, pode estar sujeito a ações legais”, declarou.
“A proteção da marca registrada é fundamental para a CrossFit®, LLC, na medida em que ajuda a preservar a integridade da marca, sua reputação e a qualidade dos produtos e serviços associados a ela. Além disso, proporciona aos consumidores a garantia de que estão recebendo produtos e serviços autênticos e reconhecidos pela empresa”.
Lucas Mendes
Fonte: www.cnnbrasil.com.br