A Fundação Renova, entidade criada para reparar os danos causados pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco, comemorou na última semana o acordo para pagamento da primeira indenização a um atingido de Mariana (MG). Mas a questão pode parar na Justiça. É que a Cáritas, entidade que assessora as vítimas no município, promete oficiar o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Na sua visão, foram descartados parâmetros a serem estabelecidos no processo de cadastramento, que será concluído apenas em janeiro do próximo ano.
O rompimento da barragem, que causou a maior tragédia ambiental do país, completou três anos nessa segunda-feira (5). Em Mariana, os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu foram destruídos e os atingidos ainda buscam a reparação dos danos que envolve, entre outras medidas, o reassentamento nas comunidades reconstruídas e o pagamento das indenizações. A responsabilidade recai sobre a Fundação Renova desde junho de 2016, quando ela foi criada conforme previsto em acordo firmado entre a União, os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, a Samarco e suas acionistas Vale e BHP Billiton.
Até então, haviam sido pagos aos atingidos que residiam nos distritos de Mariana apenas adiantamentos para quem perdeu moradias e carros. Também receberam indenização familiares de alguns dos 19 mortos na tragédia. Quem perdeu casa, por exemplo, recebeu R$ 20 mil. No entanto, é um valor parcial, a ser descontado quando for definido o montante da indenização final.
“Acabamos de fechar o acordo com o primeiro atingido, o que é uma vitória pra gente”, disse Andrea Aguiar Azevedo, diretora executiva de Engajamento, Participação e Desenvolvimento Institucional da Fundação Renova, em entrevista à Agência Brasil. Segundo ela, novos acordos devem começar a ser fechados. “Estamos com a esperança de que pelo menos 40% das famílias sejam indenizadas até o fim deste ano. E o resto até a metade do ano que vem”.
A Cáritas diz que está ciente da movimentação, mas questiona a falta de transparência e alega ilegalidade. “Vamos oficiar o MPMG para pedir esclarecimentos sobre o que está sendo garantido ao atingido. Não tivemos acesso ao termo. O atingido foi orientado, por exemplo, de que tem 10 dias para se arrepender?”, questiona Ana Paula dos Santos Alves, assessora técnica da Cáritas e coordenadora do processo de cadastramento dos atingidos de Mariana.
De acordo com ela, está assegurado, em âmbito judicial, que a Fundação Renova deve aguardar a conclusão do cadastramento, previsto para janeiro. “Só vai ser um acordo justo se o atingido tiver os parâmetros construídos com sua assessoria. Ele precisa ter elementos para negociar de forma mais justa e isonômica. A Fundação Renova não está ajudando, porque é uma relação de desigualdade. O atingido vai sem orientação, mas tentado pela oferta econômica”.
Diferentemente dos demais municípios atingidos, em Mariana a Justiça concedeu à Cáritas o direito de conduzir o processo do cadastramento das vítimas. Ana Paula explica que ele envolve quatro etapas e que, ao final, será feito um dossiê para cada atingido. Os documentos proporcionarão uma base para o processo indenizatório. Com suas entregas em janeiro, as indenizações poderiam ser pagas ao longo de 2019.
Paralelamente ao dossiê, a Cáritas vai apresentar uma matriz de danos, isto é, uma tabela com a valoração de cada prejuízo causado. Para determinar valores dos danos materiais, foi firmado um acordo com o Instituto de Pesquisas Econômicas e Administrativas (Ipead), vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os prejuízos imateriais serão cotados por uma instituição que ainda será selecionada.
“Alguns atingidos nos procuraram dizendo que tinham propostas. Eu expliquei que não tinha como orientar. Nós só poderemos orientar quando tivermos o cadastro sistematizado e a matriz que ofereça parâmetros, porque se eles avaliarem que o metro quadrado vale x, eu vou saber se vale y. Neste momento, não sei dizer se a oferta é justa ou não”, explica Ana Paula.
Na visão da Fundação Renova, cabe aos atingidos escolher se iniciam suas negociações com base nos danos já relatados no formulário preliminar e no laudo de vistoria do cadastro ou se aguarda a finalização do dossiê. Segundo ela, o acordo firmado em outubro com o MPMG, que traz as diretrizes para as indenizações, assegura a possibilidade do início dos acordos individuais. “O atingido que tiver interesse em conhecer a proposta e não concordar com o conteúdo apresentado, poderá ainda aguardar o dossiê da Cáritas”, diz em nota a Fundação Renova.
Conquista judicial
Procurado pela Agência Brasil, o promotor do MPMG, Guilherme Meneghin, se surpreendeu e disse não ter conhecimento do pagamento dessa primeira indenização. Segundo ele, será necessário verificar o que está ocorrendo e, se houver alguma ilegalidade, poderá ser apresentado um questionamento judicial. “Pelo acordo que fizemos, a Fundação Renova não pode convocar os atingidos. Se uma pessoa espontaneamente for até eles e quiser aceitar a indenização, ela é livre para isso”.
Meneghin avalia que o dossiê será um instrumento importante, que permitirá melhor avaliação da proposta de indenização final. Segundo ele, a aplicação do cadastro pela Cáritas configura uma conquista dos atingidos, pois quando as mineradoras e a Fundação Renova conduziam esse processo, havia impactos não considerados que deixariam muitos excluídos. “Eles sempre resistiram, por exemplo, a pagar dano moral. E, em muitos aspectos, o dano moral é muito maior que o material. Quando a pessoa perde sua casa, o maior impacto é o psicológico”, diz.
Integrantes da comissão de atingidos defendem também que todo o tempo perdido com reuniões semanais seja passível de indenização por danos morais. Alguns reclamam que suas vidas hoje se resumem a participar de longos e cansativos encontros, três a quatro vezes por semana.
“Passo horas em função de reunião e não recebo nada por isso. Estou tentando representar a comunidade, porque há muitas pessoas sem instrução. O que falam para eles, está bom. A maioria não tem nem o primeiro grau. Sabem só o fundamental para viver na comunidade”, diz Romeu Geraldo de Oliveira, que vivia em Paracatu. “Devem ter vários tipos de indenização, isso tem que ficar claro. Se pensar sobre a união que a gente tinha, e o fato de hoje estarmos em bairros separados, já temos um tipo de indenização. Ter passado a noite no meio do mato é outro tipo de indenização. Tudo isso é direito nosso”, complementa José dos Nascimento de Jesus, conhecido como Zezinho do Bento, outro integrante da comissão de atingidos.
A situação de Mariana vem sendo tratada no âmbito da Justiça estadual e diverge dos outros municípios da Bacia do Rio Doce que foram afetados, cujas ações foram federalizadas. Daí as especificidades. No restante da bacia, o cadastro está sendo produzido pela Fundação Renova e muitas indenizações já foram pagas.
Exclusão
De acordo com o promotor Guilherme Meneghin, os primeiros critérios que haviam sido adotados pela Fundação Renova excluiriam em Mariana cerca de mil pessoas. “Não concordavam em indenizar lucro cessante de algumas atividades, como de apicultura, por exemplo”, acrescenta. Na Justiça, ficou definido que a Cáritas seria encarregada de conduzir o cadastro que elencará os danos sofridos por cada vítima.
Meneghin explica que o atingido não é obrigado a concordar com a proposta apresentada pela Fundação Renova e pode negociar os valores. Em última instância, ele terá a possibilidade de entrar com o pedido de liquidação e cumprimento de sentença. Nesse caso, o processo vai diretamente para a fase de execução e caberá a um juiz fixar o valor que terá de ser pago de imediato, pois eventuais recursos não terão efeito suspensivo.
“É importante destacar as garantias previstas no acordo que firmamos em outubro. Uma delas estabelece a inversão do ônus da prova. Isto é, tudo que o atingido declarar será verdadeiro até prova em contrário. Isso significa que o juiz, na hora de avaliar o processo, deverá dar uma interpretação mais favorável ao atingido. Se ele está dizendo que o dano moral é maior, caberá à Fundação Renova provar que é menor. Essa regra subverte a regra natural do processo em benefício dos atingidos”, afirma Meneghin.
Atraso
Passados três anos da tragédia, a ausência de pagamento de indenizações incomoda boa parte dos atingidos. “É uma coisa que poderia dar pra gente uma condição melhor. Se tivesse a indenização poderia, até a reconstrução da nova Paracatu, tentar alguma coisa diferente para estabilizar as finanças. Eu tinha minha sorveteria. Hoje não tenho nada”, lamenta Romeu. Parte de sua renda atual vem de um auxílio mensal pago pela Fundação Renova, que ele considera insuficiente. Esse auxílio, que deverá ser garantido por pelo menos um ano após o reassentamento, foi previsto em acordo judicial e não configura verba indenizatória.
Apesar da demora nos pagamentos, Zezinho do Bento vê um ponto positivo. “Ainda não estamos reassentados e sabemos que tem pessoas com melhor capacidade de administrar, mas outras não. A pessoa dentro da sua casa sabe determinar muito bem onde gastar o dinheiro. Mas morando na cidade, se gasta muito fácil. E uma vez a indenização é paga, precisa respeitar cada um, que tem o direito de usar o dinheiro como quiser. Então, penso que no final, coincidindo com o reassentamento, pode acabar sendo melhor”.
Agência Brasil