Com aproximadamente 748 mil detentos, distribuídos em 1.435 unidades, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, o que demanda atenção redobrada das autoridades durante a pandemia de Covid-19. Além da superlotação e da insalubridade de ambientes, um levantamento divulgado hoje (2) pelo Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), da Fundação Getulio Vargas (FGV), aponta outra fragilidade no sistema: trata-se do nível de preparo de agentes penitenciários para lidar com a pandemia.
O sistema prisional brasileiro conta com 110 mil agentes penitenciários. São esses profissionais os mais propensas a levar o novo coronavírus para dentro das unidades prisionais, já que eles mantêm contato diário com o lado de fora.De acordo com o levantamento divulgado nesta terça-feira pelo NEB, apenas 9,3% dos 301 agentes que responderam questionário online, aplicado entre os dias 15 de abril e 1º de maio, afirmam ter recebido treinamento específico para enfrentar a pandemia. No total, oito em cada dez reconheceram que não se sentem habilitados para atuar no cenário que se instalou.
Paralelamente à ausência de instruções por parte das chefias, que atinge um total de 67% dos entrevistados, somente um terço dos agentes ouvidos na sondagem disse ter recebido equipamentos de proteção individual (EPI), como luvas e máscaras. Nesse quesito, destaca-se positivamente a região Sul, onde 53,84% dos profissionais tiveram esse tipo de provisão, em contraposição à região Norte, onde a parcela é de 26,66%.
Com relação ao suporte do poder público, mais da metade dos entrevistados afirmou se sentir esquecida pelos entes estaduais. Também aqui, os números variam conforme a região do país onde atuam. No Sudeste, a sensação de apoio é compartilhada por apenas 11,26% dos entrevistados, enquanto no Sul a proporção chega a 46,15%. Quanto ao apoio direto de superiores da cadeia hierárquica, 70,43% dos participantes do levantamento declararam haver lacunas.
Procurado pela Agência Brasil para comentar o resultado do levantamento, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que está subordinado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), não se manifestou até a publicação desta notícia.
Entidades como a Organização das Nações Unidas, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a Human Rights Watch e a Conectas, têm apontado como via possível a adoção de penas alternativas à privação de liberdade, alertando para o fato de que parte significativa das pessoas que cumprem pena no país são presos provisórios, isto é, não foram condenadas pela Justiça, embora estejam aprisionadas.
A sugestão também foi feita pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Recomendação nº 62/2020. Até o cumprimento de mandados não urgentes está sendo adiado, como modo de se reduzir a circulação do novo coronavírus, segundo o órgão.
Estatísticas
De acordo com monitoramento do Depen, até este domingo (31), em presídios de todo o país, haviam sido confirmados 1.343 casos de Covid-19, que se somavam a 883 casos suspeitos.
No total, registraram-se 44 óbitos decorrentes da infecção e 5.039 testes foram aplicados. A região Centro-Oeste é a que liderava o número de casos confirmados, com 656. A sequência obedecia a seguinte ordem: Norte, com 335; Nordeste, com 229; Sudeste, com 108; e Sul, que concentrava 15.
No estado de São Paulo, onde estão 231.287 detentos, foram confirmados 73 casos e notificadas 12 mortes e 101 suspeitas de infecção. A testagem cobriu um universo de 5.303 pessoas.
A Agência Brasil apurou que o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou ação contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo para cobrar do governo medidas de proteção aos agentes penitenciários. O processo foi articulado em conjunto com o Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (Sinfuspesp), Sindicato dos Agentes de Segurança Penitenciária e demais Servidores Públicos do Sistema Penitenciário (Sindcop) e Sindicato dos Agentes de Segurança Penitenciária do Estado de São Paulo (Sindasp).
As organizações pedem que a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) forneça EPIs, kits de testes rápidos e insumos de higiene aos trabalhadores e denunciam que “há milhares de pedidos de afastamento de servidores com sintomas da Covid-19, inclusive casos de internação e acometimentos graves da doença, além de óbitos comprovados”. Também pleiteiam que seja disponibilizado ao menos um profissional de saúde para cada plantão, em cada uma das 176 unidades prisionais do estado.
Em nota encaminhada à reportagem, o MPT esclarece que a ação foi remetida ao Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) e que havia, anteriormente, tentado chegar a um acordo com o governo, apresentando tais recomendações, mas que não foram acolhidas. A reportagem procurou a SAP, para obter posicionamento sobre o assunto, mas não teve retorno até a publicação desta matéria.
A reportagem buscou complementar as informações do Depen com casos que têm sido acompanhados pelo CNJ. Por meio de sua assessoria de imprensa, o conselho informou que, até a última quinta-feira (28), 1.882 funcionários dos presídios haviam testado positivo para Covid-19 e 29 faleceram. A quantidade de casos confirmados entre os servidores é quase seis vezes maior do que a registrada em 1º de maio (327).
Mudanças no cotidiano
Os pesquisadores do NEB levantaram, ainda, que 63% dos agentes prisionais tiveram a rotina alterada. As adaptações em torno de medidas de prevenção contra a covid-19 também abarcam a própria interação dos agentes com os presos, aspecto indicado por mais de 70% dos entrevistados.
Entre as principais mudanças, estão o aumento do nível de preocupação com medidas de higiene e as alterações de escala de trabalho e procedimentos trabalhistas, como férias e licença. Para entender como tem sido o dia a dia dos agentes penitenciários, a Agência Brasil conversou com dois deles, um da capital paulista e outro do interior do estado.
Diretor do Sindasp na região de Marília, Luciano Carneiro tem 46 anos de idade e 22 de carreira como agente. Formado em enfermagem e direito, ele conta que, ao vê-lo de máscara de proteção, pela primeira vez, os presos acharam que era exagero de sua parte usar. Diante das zombarias, ele decidiu argumentar que a pandemia deveria ser levada a sério por todos, já que o contexto exige espírito de colaboração para que se possa conter a transmissão do novo coronavírus.
A unidade onde Carneiro trabalha, a Penitenciária de Marília, tem capacidade para comportar 622 pessoas, mas, na prática, conta com 1.367. Lá, relata o representante sindical, existem duas celas solitárias, que atualmente estão sendo usadas para acomodar, na volta, por 14 dias de isolamento social, aqueles que eventualmente precisam deixar a unidade para receber atendimento médico ou por outra razão urgente, para que não contaminem outros.
A forma como os detentos da unidade encaravam, inicialmente, a questão também preocupava Carneiro porque é ele quem cuida dos pais, que são idosos e sofrem de doenças cardíacas. Como as organizações de defesa de direitos humanos, ele também destaca a precariedade das instalações prisionais, pontuando que em seu interior pode ser detectada uma série de problemas, como falta de ventilação, de limpeza e de assistência médica, que contribuem para a propagação de doenças infectocontagiosas.
“O preso, graças a Deus, está entendendo [a gravidade da pandemia]. Eles [os detentos] estão acompanhando pela imprensa, pela televisão. No começo, alguns ficaram meio tristes, porque é difícil ficar sem a família, mas a maioria está entendendo”, afirma Carneiro, aludindo à suspensão das visitas de familiares aos estabelecimentos, que foram acompanhadas de ajustes no banho de sol, escoltas e revistas dos detentos, bem como restrições quanto à entrada de objetos externos, conforme sublinham os entrevistados à reportagem e aos pesquisadores do NEB.
Perguntado sobre o estresse provocado pela pandemia, Carneiro diz que o crédito por não ter deixado tudo desmoronar é, em grande parte, dos presos, que estão cooperando. “Isso está pesando no pessoal, até em mim, e olhe que sou uma pessoa ativa. Aquele negócio de ir à academia, andar de bicicleta, foi retirado da gente. Você começa a comer mal, fica ansioso. É um impacto muito negativo e só não foi pior porque houve uma compreensão da massa carcerária. Se houvesse incompreensão, teríamos grandes quadros de depressão”, responde ele.
Outro representante do Sindasp, Luiz Piva, de 40 anos, integra, há seis anos, a equipe de agentes do Centro de Detenção Provisória Giovani Martins Rodrigues, localizado em Guarulhos. A unidade na qual atua, aonde chega após percorrer duas horas de carro, foi construída para comportar, no máximo, 844 presos, mas totaliza 1.407.
No começo da crise sanitária, o que assustou Piva foi o desalinho entre a progressão de Covid-19 e as medidas de prevenção que estavam sendo executadas. Segundo ele, não foi logo que as unidades estabeleceram protocolos para controlar a entrada dos detentos, de forma que muitos deles davam entrada sem passar por nenhum tipo de isolamento. Os itens de EPI também tardaram a chegar, sendo entregues somente três semanas após a equipe de sua unidade cobrar da SAP.
No mês passado, narra Piva, um colega de trabalho faleceu, além de outros 11 agentes. Ele mesmo, acrescenta, suspeitou ter sido infectado.
Questionado, a exemplo de Luciano Carneiro, sobre como avalia sua saúde mental no presente, Piva resume que a categoria de que faz parte já trabalha no limite. “A gente já vem trabalhando de forma bem precária em termos de mão de obra. O nosso trabalho é o segundo mais estressante do mundo. Então, essa carga emocional, essa carga de estresse redobra, porque, de certa forma, a segurança fica fragilizada. E a carga de trabalho também, porque quando você não tem um profissional para realizar certa função, você realiza a tua e mais outras quatro”, lamenta. “Quando você chega ao final do dia, você está esgotado física e mentalmente.”
Protocolo
Para a cientista política Gabriela Lotta, coordenadora do NEB, o que está posto é o recrudescimento de mecanismos que já não funcionavam antes da pandemia. “A gente tem, historicamente, um problema de investimento e invisibilização desse setor, e em tempos de pandemia isso tudo piora. Mas, ao mesmo tempo, para dizer que isso não é só um problema de vontade política, eu diria que isso é também muito reflexo da sociedade brasileira, que não é uma sociedade que luta por prisões melhores ou para diminuir o número de presos, pelo contrário, é uma sociedade bastante punitivista, que acredita na punição, na prisão”, afirma.
Na avaliação da acadêmica, “não há vontade política nem apoio social” para se sustentar uma política efetiva de desencarceramento. “E isso se materializa, infelizmente, em todos os problemas que a gente vê no sistema carcerário e que quem está sentindo na pele também é o agente prisional, que relata que está morrendo de medo das tensões dentro dos presídios”, completa.
Hoje em Dia